A beleza e o caso do Rio de Janeiro nos anos 1990

“Preto ou branco?” era a pergunta referente à maconha ou cocaína ouvida nas bocas de fumo dos anos noventa, as duas únicas drogas revendidas pelo tráfico. Se hoje a juventude cresce nas telas, o entretenimento era a rua.

O Rio de Janeiro já era uma cidade partida entre os prédios da classe média e os barracos das favelas, mas junto às praias, playground democrático onde os dois mundos interagem com a mesma liberdade, os bailes funks levavam os jovens do asfalto morro acima em busca dos batidões.

De Steve B a Claudinho e Buchecha e madrugadas no embalo das coreografias do funk — o gênero musical já havia começado a se espalhar pelos bailes de corredor da Zona Norte, onde lado A e lado B batiam de frente na disputa pela melhor música composta por MCs de diferentes comunidades, e aos poucos se disseminava pelas favelas da Zona Sul num clima de festa em que a classe média era bem-vinda. A juventude rugia uma liberdade sem a experiência televisionada pelas mídias sociais.

O funk não era tocado nas rádios, mas ecoava pelas noites anunciando sua força que anos mais tarde viria a cruzar fronteiras internacionais. O Comando Vermelho operava soberano. Nas favelas menores, como era o caso da Pereira da Silva, morro em que Dora, protagonista de Se Acaso Numa Curva (DarkSide), circulava, os meninos da boca eram filhos da comunidade e viviam um senso íntimo de família — suas mães, pais, parentes apareciam para trazer o almoço, papear, dar esporro.

O tráfico istrava a comunidade, e, além dos bailes que giravam em torno da música e da venda de drogas, também fazia melhorias nas vias, ajudava na obra das casas e nos remédios dos moradores mais necessitados. E, sobretudo, funcionava como tribunal interno, punindo cruelmente quem vacilasse, regras de um universo onde o poder público não cumpre seu papel.

Mas a proximidade familiar nas bocas se dissolveu rapidamente através da hostilidade do poder armado. Ao longo dos anos seguintes, a situação se agravaria com a aparição de novas facções criminosas na constante guerra por territórios entre traficantes de comunidades inimigas, que invadiram e ocuparam casas de moradores e instauraram regras ainda mais vis, impactando o convívio entre o asfalto e o morro.

Uma Mulher Virando Outras

Inspirada em minha experiência de um namoro com um gerente do tráfico aos quinze anos, Dora atravessa os dois mundos com a audácia, a libido e a curiosidade inconsequente de uma adolescente que vai além dos contornos da própria realidade e se divide entre duas dinâmicas distintas das possibilidades de si.

De família abastada, ela frequenta a escola particular, viaja para mansões em Angra, vai às festas de playboys e às atividades extracurriculares típicas de uma adolescente burguesa, mas também desce as ladeiras de Santa Teresa sozinha, fugindo do desmoronamento da estrutura familiar, e encontra um universo controverso na convivência com os meninos da boca do morro vizinho à sua casa — tardes e noites regadas à muita conversa e baseado.

A violência exponencial põe em xeque sua ética e seu modo de enxergar o mundo, e ela é convocada a fazer escolhas complexas que definirão a construção de sua identidade.

O livro é o primeiro da Trilogia de Uma Mulher Virando Outras. Enquanto em Se Acaso Numa Curva Dora é uma menina virando mulher, no segundo, Hollywood, já com vinte e três anos, ela se lança no mundo e acaba encarando o vazio do suposto sucesso.

No terceiro, Ilha Deserta, ela é uma mulher de trinta e sete anos que abandona tudo que havia conquistado para ir em busca do eixo simples do que considera felicidade. A trilogia é um estudo do feminino contemporâneo inspirada em minha pesquisa de campo.

*Francisca Libertad, carioca, começou a carreira como atriz de teatro, depois se mudou para a Califórnia, onde ingressou na indústria de audiovisual como assistente de direção em Hollywood por quase uma década. Em paralelo, estudou no UCLA Writer’s Program, onde escreveu em inglês seu primeiro longa e um romance, Black or White, embrião para Se acaso numa curva. Em 2012, retornou ao Brasil para trabalhar como assistente de direção na Rede Globo, onde participou de nove novelas, enquanto desenvolvia seus projetos pessoais de escrita e direção. Atualmente, está desenvolvendo séries de ficção para canais de streaming, revisando seu segundo livro e escrevendo o terceiro.