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Matérias / Sociedade

O negro drama na literatura

Como a vida nas periferias brasileiras ainda hoje reflete o malconduzido processo pós-abolicionista no país

Fábio Gonçalves* Publicado em 20/05/2025, às 13h00 - Atualizado às 15h59

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Capa do livro 'Uma Negra Comédia' - Divulgação
Capa do livro 'Uma Negra Comédia' - Divulgação

O organismo social brasileiro ainda não se curou completamente do tumor da escravidão. Como dizia Joaquim Nabuco — com outras palavras —, o debilitado corpo nacional, mesmo depois da cirurgia de 88 que lhe extirpou o cancro, deveria ar por constantes quimioterapias, um longo tratamento que pudesse saná-lo desta mácula que lhe veio de nascença e que segue lhe fazendo feridas recidivas:

Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância”.

Ou seja, previa o abolicionista que não seria o bastante acabar com o absurdo regime escravocrata; era preciso também oferecer caminhos para que a massa dos desgraçados encontrassem, pari u com a liberdade de negro forro, a completa dignidade humana e a oportunidade de finalmente tomar as rédeas do seu destino — sonho, até ali, atado e aferroado pela manilha e o libambo.

Mas não sucedeu como devia. E não, muito porque, tão logo terminado o suplício do chicote, ou a vibrar sobre o costado dos pretos o açoite da ideologia — e de uma ideologia francamente racista.

Racismo e escravidão

Ora, não foi o racismo que inventou a escravidão — mal de que padece a humanidade desde todos os séculos. Também não foi por motivos racistas que os portugueses compraram cativos africanos na costa da Guiné ou no porto de Luanda — cativos, de regra, vendidos aos brancos por rivais da mesma raça.

No entanto, foi, sim, por motivos racistas que os negros brasileiros, no pós-abolição, ficaram marginalizados, vistos como gente de terceira classe, uma ralé, um povaréu a quem se deveria sonegar o melhor estudo, os melhores trabalhos, os melhores casamentos, enfim, as melhores posições sociais.

Atesta de maneira indisfarçável esse racismo, científico e positivista, que fundamentava a cosmovisão das nossas elites nas primeiras décadas do século ado, o capítulo A República de 89 e o Progresso da Miscigenação no Brasil, da obra Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre.

Ali, o sociólogo registra os resultados de uma pesquisa que empreendeu consultando pessoas de várias partes do país, do povo e da elite — mais da elite que do povo. A entrevista constava apenas de duas perguntas: qual era a opinião do fulano acerca da abolição; e se ele permitiria que alguém de sua família se casasse com um negro.

Com certa variedade de justificativas, a resposta à primeira questão foi praticamente unânime: tinha mesmo que alforriar. Quanto à segunda, na expressiva maioria dos casos, os entrevistados foram taxativos: de jeito nenhum. Seria uma vergonha; motivo de enorme tristeza e revolta.

Isso porque vogava na mente dos nossos industriais, fazendeiros, políticos etc., o ideário eugenista, segundo o qual o processo de miscigenação, quando mal inevitável, deveria ser procedido mais ou menos à maneira dos cruzamentos zoológicos, visando obter, do matrimônio, esse ou aquele espécime de mestiço.

O objetivo dessa alquimia racial? O paulatino desaparecimento do negro, tido como fundamentalmente inferior. E se não fosse possível embranquecê-lo, que ele ficasse isolado, com gente de sua laia, de modo a não manchar a raça melhor — segundo dizia-se — dos descendentes europeus.

Malgrado essas concepções, jamais ocorreu aqui, como nos Estados Unidos, uma divisão racial estanque — de modo que não devemos buscar ali, como não raro se faz, soluções para as mazelas étnicas daqui. Sobretudo nos andares de baixo da sociedade, houve, e ainda há no Brasil, a miscigenação livre e solta, marca distintiva de nosso país. Mas isso, repito, nos andares de baixo.

Senão pelo talento artístico ou atlético, ou pela genialidade intelectual, que elevou ao primeiro plano da nossa história figuras como Machado de Assis, Pelé ou os irmãos Rebouças, senão por isso, ao negro quase sempre ficaram e ainda ficam vedados os mais altos patamares do nosso edifício social — fazendo com que a nossa pobreza, inquilina dos morros, das quebradas, dos cortiços, tenha uma paleta de cores predominante: matizes da negritude.

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Capa do livro 'Uma Negra Comédia' - Divulgação

É disso que fala, um século depois da abolição, a poesia urbana dos Racionais MC’s, grupo de rap que conseguiu encenar em nosso imaginário, com chocante vivacidade, o negro drama, a tragédia dos filhos pretos e pardos sem pai, daqueles que, crescendo em ambientes degradados, sem boas referências culturais e humanas, sem perspectivas de futuro, terminam nas drogas, na criminalidade, e viram o detento — como aquele do famoso diário de 1992.

Há, pois, como que um ciclo, um eterno retorno aos tempos do eito e da senzala: famílias desestruturadas, instrução precária, marginalização, violência, morte precoce — morte física ou social.

É também disto que fala o meu novo romance, Uma Negra Comédia, trama que se a na periferia de São Paulo, dos anos de 1990 até quase os nossos dias, e que se compõe de retratos — pintados pelo protagonista-narrador — de personalidades que são frutos desse doloroso processo histórico-social.

Não se trata, porém, de um romance-protesto; é apenas a tentativa de um registro fidedigno e sincero das consequências desse mal-acabado processo da abolição — mais ou menos como Tchékhov revelando — para desgosto do idealista Tolstói — a miséria em que se encontravam os mujiques ao final do regime de servidão na Rússia.

É, se posso dizer, um modo de contribuir, por vias literárias, que sempre promovem reflexão e diálogo, para aquela constante terapia purgativa que, um dia, assim espero, haverá de nos curar.


*Fábio Gonçalves é professor de linguagens e autor de livros como Um Milagre em Paraisópolis (2020), Um Retrato do Doente e outros contos de Morte e Solidão (2021) e Peroba, romance inédito que ganhou o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, com o tema dos 200 Anos de Independência do Brasil, em 2022. Também escritor de obras infantis e didáticas, compôs o júri do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, em 2022, uma das premiações mais prestigiadas do país. Agora lança Uma Negra Comédia, que retrata as vidas das juventudes nas periferias.